A recente exoneração da presidente da Fundação, a
antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, mostra a luta em torno da
destinação das terras públicas no Brasil
Antonio Cruz / ABr
Para quem acompanha a política indigenista, a recente exoneração a pedido, por motivo de saúde, da antropóloga e demógrafa Marta Azevedo da Presidência da Funai, não deveria surpreender. Ao longo dos seus quase 46 anos de existência, a Funai teve 34 presidentes, contando os interinos. É um presidente a cada um ano e quatro meses aproximadamente.
Uma ONG chegou a cunhar a expressão “galeria da crise permanente” para se referir à galeria dos presidentes da Funai. Nos oito anos dos dois mandatos de FHC foram nove presidentes. Lula quebrou essa tendência ao ter apenas três presidentes em oito anos, dois do quais os mais longevos nessa função. Já a presidenta Dilma caminha para a terceira presidente em menos de três anos de mandato, que, assumindo como interina no lugar de Marta Azevedo, já sinaliza a retomada do ritmo da “galeria da crise permanente”, se aproximando da média nada honrosa de FHC.
É óbvio que a troca de comando da Funai não é, em si mesma, expressiva – ainda mais quando se dá por motivo de força maior. Não obstante, o fato da alternância de comando se dar nessa cadência ao longo de quase toda a história do órgão – fenômeno de que nos damos conta quando se observam quebras nesse ritmo – é um indicador significativo da instabilidade institucional que marca a política indigenista e seu lugar relativamente subalterno em sucessivos governos – não importa quão populares, inclusivos e democráticos se pintem. Outros números e estatísticas são ainda mais significativos, pois permitem observar e correlacionar dimensões não necessariamente visíveis na dança das cadeiras de comando.
Veja-se, por exemplo, o ritmo – no geral – decrescente de reconhecimento de Terras Indígenas (TIs) nos sucessivos governos “democráticos” (tabela a seguir).
Demarcações Terras Indígenas nos últimos governos no Brasil
TIs Declaradas
|
TIs Homologadas
|
|||
Presidente
|
Nº*
|
Extensão*
|
Nº*
|
Extensão*
|
Dilma Rousseff (2011-2012)
|
05
|
18.461
|
10
|
972.149
|
Lula (2007-2010)
|
51
|
3.008.845
|
21
|
7.726.053
|
Lula (2003-2006)
|
30
|
10.282.816
|
66
|
11.059.713
|
FHC (1999-2002)
|
60
|
9.033.678
|
31
|
9.699.936
|
FHC (1995-1998)
|
58
|
26.922.172
|
114
|
31.526.966
|
Itamar Franco (1992-1994)
|
39
|
7.241.711
|
16
|
5.432.437
|
Fernando Collor (1990-1992)
|
58
|
25.794.263
|
112
|
26.405.219
|
José Sarney (1985-1990)
|
39
|
9.786.170
|
67
|
14.370.486
|
Fonte: Instituto Socioambiental, abril de 2013
* As colunas não devem
ser somadas, pois várias terras homologadas em um governo foram
redefinidas e novamente homologadas em outro.
Se somarmos os dados da tabela acima
com outros de igual teor para o atual governo – quais sejam, o de que
nenhuma unidade de conservação federal foi criada na Amazônia Legal no
governo Dilma, que titulou apenas 632 hectares de terras de quilombos
(contra cerca de 60 mil hectares nos dois mandatos do governo Lula,
segundo dados oficiais do Incra) e assentou por meio do Incra o menor
número de famílias registrado desde 1996 – o quadro se completa e fica
mais inteligível: estamos diante da maior paralisia dos procedimentos
administrativos de destinação e reconhecimento de terras públicas de que
se tem notícia nos últimos 25 anos.
Essa inércia em relação à proteção e
gestão das terras públicas, em geral, e ao reconhecimento dos direitos
territoriais indígenas e de outros grupos, em particular, parece estar
articulada a um conjunto de outras estratégias conduzidas em várias
frentes por distintos atores sociais que conformam a base de sustentação
política do governo: no Legislativo, pela tramitação de proposições (de
projetos de lei a propostas de emenda à constituição) que visam
extinguir, ou reduzir áreas protegidas, ou flexibilizar suas figuras
jurídicas, desconstruir os direitos territoriais de indígenas e
quilombolas, e liberalizar a exploração de recursos naturais nas TIs
(seja viabilizando a mineração nestas, seja tornando possível a posse
indireta destas a produtores rurais na forma de concessão); na interface
entre o Executivo e o Legislativo, alterando todo o procedimento de
demarcação das TIs e fragilizando as normas relativas ao licenciamento
ambiental de grandes obras de infraestrutura; e no Judiciário, por meio
de ações judiciais que buscam, ou arguir a constitucionalidade da
legislação em torno dos direitos territoriais indígenas e de povos e
comunidades tradicionais, ou construir interpretações restritivas aos
direitos coletivos e difusos – entre outras medidas em outras frentes.
Nas palavras do professor titular do Museu Nacional da UFRJ, João
Pacheco de Oliveira, estamos diante da maior e mais violenta ofensiva contra a política indigenista da história – “um fato realmente inédito na história do País”.
Não se tratam, necessariamente, de
medidas de má fé, ou de meros deslizes ligados às externalidades
negativas de opções políticas e econômicas conjunturais; mas, sim, de
desdobramentos gramaticais à atual arquitetura hegemônica da política e
da economia do país. Vítima do delírio de crescer economicamente a taxas
chinesas e almejando ampliar o superávit primário por meio da
exportação de commodities de baixo input tecnológico e superar os
entraves de infraestrutura logística ao crescimento de tais exportações –
entre outras orientações macroeconômicas; o governo tornou-se refém
político do modelo convencional de expansão do agronegócio (altamente
demandante de terras e recursos naturais, e socialmente excludente) e do
lobby de grandes conglomerados empresariais de infraestrutura, energia e
mineração – que atuam simultânea e indistintamente nos três vértices da
Praça dos Três Poderes. A primarização da economia brasileira e os
sinais de aparente desindustrialização são as expressões mais evidentes
dessas orientações, que se traduzem, por sua vez, na importância do
agronegócio na manutenção do “PIBinho” [sic].
Considerando que o atual modelo de
expansão do agronegócio se assemelha a um "Pacman" de terras e recursos
naturais, não surpreende que seus representantes se esforcem para
ampliar a oferta de terra barata. A estratégia, agora, tem sido abrir
áreas hoje protegidas (TIs, territórios quilombolas, UCs) aos seus
interesses econômicos, ou tirá-las do caminho, quando entendidas como
entraves à sua consolidação e/ou expansão. Se sentindo rejuvenescidos
com o bem sucedido desmonte do Código Florestal, os setores
politicamente mais ativos do agronegócio, articulam-se agora para
investir sobre o butim das terras públicas – ofensiva que se
materializa, como relatado, em várias estratégias e frentes.
Uma destas é a frente midiática e
comunicacional. A ofensiva aí se dá por meio da ressurreição de velhos,
porém sempre disponíveis, preconceitos em relação aos povos e
comunidades que tradicionalmente ocupam essas terras (usualmente
tratados como massa de manobra manipulada, sem vontade própria) e da
desqualificação das expertises nas quais se assenta o reconhecimento dos
direitos territoriais desses grupos, entre as quais, a Antropologia
(vista não como uma disciplina científica com conceitos e métodos
próprios, mas como uma expressão subjetiva de opiniões). Trata-se de um
trabalho diuturno de deslegitimação dos procedimentos de reconhecimento
de direitos territoriais (no caso, a demarcação de TIs e a titulação de
territórios quilombolas), dos seus beneficiários (povos indígenas e
comunidades tradicionais) e dos técnicos (da Funai, mas também de outros
órgãos, e eventuais colaboradores) que os conduzem, usando para isso
todos os meios disponíveis aos detentores do monopólio da violência
simbólica legítima e das grandes corporações de comunicação.
Assim sendo, o contexto atual traz
ingredientes novos para se entender as mudanças de comando nos órgãos
responsáveis pela gestão do que resta do patrimônio de terras públicas e
de territórios étnicos do País, e de seus recursos naturais – entre os
quais está a Funai. À sua instabilidade administrativa crônica,
resultante do lugar convencionalmente subalterno dessa agenda, deve se
agregar o quadro – aqui brevemente traçado – de uma investida sem
precedentes sobre tais terras, territórios e recursos no Brasil, e da
disputa feroz em torno dos mesmos. De um lado, o governo parece
renunciar paulatinamente à obrigação constitucional de proteção dos
direitos difusos e das minorias – renúncia esta ancorada na arquitetura
político-econômica hegemônica, na investida sobre os direitos
territoriais e em uma concepção de País baseada no desprezo pela
natureza e pela diversidade.
De outro, os movimentos sociais e
os indígenas, em especial, têm respondido por meio das estratégias que
se encontram ao seu alcance, a depender dos contextos dos conflitos e
dos objetivos em jogo nestes: retomadas de terras ancestrais, ocupações
de canteiros de obras e prédios públicos, e ações de desobediência civil
(como a resistência a mandatos judiciais de reintegração de posse) –
entre outras. Isso ajuda a entender os números levantados pelo Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), ligado à
Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), de 560 índios assassinados no Brasil nos dez anos de
governos Lula e Dilma (praticamente um por semana) – um crescimento de
168,3% em relação à média, que já não era honrosa, dos oito anos de FHC.
Em meio a esse cenário, fica-nos
(para mim e para vocês leitores) a pergunta: a que determinações
respondem (a serviço do quê e de quem se dão) as mudanças de comando nos
órgãos responsáveis pela gestão das terras públicas no País?
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Henyo Trindade Barretto Filho é antropólogo e diretor acadêmico do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB).
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