Os desdobramentos do movimento Euromaidan aprofundam a ruptura entre Moscou e o Ocidente
por Antonio Luiz M. C. Costa
Olga Maltseva / AFP
Os clientes compram peixe durante a Feira Internacional Agro-industrial "Agrorus 2014", em São Petersburgo, em 27 de agosto de 2014. A Rússia baniu a maioria dos produtos alimentares da UE e dos EUA em resposta a sanções ocidentais
A escalada de hostilidade e sanções mútuas entre a Otan e a Rússia por causa da guerra civil na Ucrânia não é o retorno da Guerra Fria. Mas é o início do fim da globalização comandada pelo Ocidente tal como sonhada pelos apologistas do neoliberalismo nos anos 1990. O dar de ombros de Vladimir Putin ante a expulsão do clube fechado das grandes potências capitalistas e a ameaça da Ucrânia de proibir o trânsito do gás russo por seu território fecham o período marcado pela construção da rede de dutos entre os campos de gás russos e as indústrias da Europa Ocidental a partir de 1992 e a admissão da Rússia de Boris Yeltsin no G-8, em 1998, quando se acreditava na Doutrina Thomas Friedman, segundo a qual países que abrem franquias do McDonald’s em seu território não entram em guerra uns com os outros.
As sementes do fim foram plantadas, porém, nos próprios anos 1990. Além de esquecer a promessa de apoiar a Rússia pós-soviética com um “plano Marshall”, Bill Clinton tomou três medidas decisivas para preparar a embrulhada na qual o mundo está hoje metido. A primeira foi a ruptura da promessa feita por Bush pai a Mikhail Gorbachev (em 1990) de não ampliar a Otan para o Ocidente, que Clinton anunciou na campanha eleitoral de 1996 e efetivou em 1999 com a incorporação da Polônia, República Tcheca e Hungria à organização, logo seguidas por outros países próximos à fronteira russa. A segunda foi a intervenção sem aprovação da ONU no Kosovo, de 1998, pois abriu um precedente para outras intervenções unilaterais e para legitimar movimentos separatistas. A terceira foi a revogação, em 1999, das leis do New Deal que regulamentavam as atividades bancárias e as fusões e incorporações dentro do setor, o que abriu caminho à crise financeira de 2008 e aprofundou a divergência de interesses entre o capital financeiro ocidental e as nações emergentes do Sul e do Oriente.
O rearmamento de Moscou e sua crescente assertividade ante as tentativas de intervenção dos EUA no Oriente Médio e na Europa Oriental, a reaproximação estratégica com a China (também em fase de expansão de seus recursos militares e esfera de influência) e a articulação dos BRICS para oferecer opções ao sistema dólar-FMI-Banco Mundial são consequências lógicas desses passos e a desajeitada e mal disfarçada tentativa de incorporar a Ucrânia ao sistema da Otan e da União Europeia foi a gota d’água que entornou o copo.
Continua inimaginável o retorno a um planeta dividido em dois mundos estanques. As economias da China e Rússia, de um lado, e dos EUA, Europa e Japão de outro, tornaram-se interdependentes demais para um retorno ao quase isolamento comercial mútuo dos tempos do pós-Guerra. Mas o momento aponta para um realinhamento importante de fluxos comerciais e políticas econômicas, que conduzem a uma realidade menos complacente para com as transnacionais ocidentais, em que o fluxo de capitais e mercadorias será condicionado por blocos geopolíticos e pelo esforço consciente dos emergentes para quebrar a hegemonia do Ocidente em favor de um mundo mais policêntrico.
Às sanções norte-americanas, europeias, japonesas e australianas de março e abril, quase simbólicas, o Kremlin respondeu com um acordo bilionário de exportação de gás à China, para advertir que depende menos da Europa do que os europeus da Rússia. Quando a guerra civil na Ucrânia se declarou, foram impostas (a partir de 17 de julho) sanções mais reais, incluindo o bloqueio de transações e venda de equipamentos a toda a indústria bélica russa e aos principais bancos e empresas de energia estatais. E, desta vez, a resposta russa foi um embargo às importações agropecuárias de todos esses países, além de bloquear seu espaço aéreo às companhias ucranianas e ameaçar fazer o mesmo ao Ocidente.
A reação de Putin fecha o mercado russo a 10% das exportações agrícolas e pesqueiras europeias, nada desprezíveis 15 bilhões de dólares anuais (90% das importações russas do setor). No mesmo dia, seu governo levantou as restrições sanitárias às importações de carne brasileira e peixe peruano e se reuniu com embaixadores do Brasil, Argentina, Chile, Equador e Uruguai. “A Argentina gerará as condições para que o setor privado, com o impulso do Estado, possa satisfazer a demanda do mercado russo”, anunciou imediatamente o chefe de gabinete do governo argentino, Jorge Capitanich. É uma oportunidade de ouro para a pesca e o agronegócio dessas e doutras nações neutras no conflito, notadamente Israel, Turquia, África do Sul, Suíça e Bielorrússia. Ao mesmo tempo, golpeia uma economia europeia estagnada em seu núcleo franco-alemão e à beira de deslizar novamente para a recessão. Estimou-se que o embargo russo reduzirá em 0,5% o já pífio crescimento europeu neste e no próximo ano (de 1,1% e 1,5% para 0,6% e 1%), aumentando as tensões internas dentro do bloco.
A União Europeia queixou-se, por meio da mídia, da falta de “lealdade” dos governos sul-americanos, sem considerar sua própria e antiga concorrência desleal nesse campo. Nem a ausência de autênticas razões éticas para países não alinhados tomarem seu partido. Na Ucrânia, como na Líbia e Síria, trata-se de disputas cínicas de poder e recursos naturais entre rivais. É verdade que a maioria dos países da União Europeia (com a exceção cada vez mais embaraçosa da Hungria) é internamente mais tolerante e democrática do que a Rússia de Putin, mas na política externa, pretender a superioridade moral do Ocidente é pura hipocrisia.
A guerra civil iniciada na Ucrânia logo após a eleição presidencial de 25 de maio (mesma data da eleição parlamentar europeia) forçou 344 mil a abandonar suas casas e deixou, até agora, entre 2 mil e 3 mil mortos, metade dos quais civis. Além de aparentemente terem derrubado um avião civil da Malaysia Airlines por engano, os rebeldes pró-russos cometeram execuções arbitrárias e outros abusos e recebem armas, reforços e assessoria de Moscou. Nem por isso deixam de ser um movimento autóctone com respaldo popular no leste do país, onde os laços culturais e econômicos com o país vizinho são fortes e o viés ultranacionalista, pró-ocidental e neoliberal do novo regime de Kiev é visto com muita desconfiança.
E é sintomático da despreocupação com que a mídia e os governos ocidentais aplicam à vontade o princípio de dois pesos e duas medidas que os mesmos líderes europeus e norte-americanos que pediram uma intervenção armada contra Bashar al-Assad por usar aviões e armas pesadas “contra seu próprio povo”, armar fanáticos cruéis (as milícias shabiha na Síria, as brigadas de militantes neonazistas do “Setor de Direita” na Ucrânia) e dificultar o acesso de ajuda humanitária a cidades sitiadas e bombardeadas aceitam com naturalidade que seus aliados em Kiev façam precisamente o mesmo, pelas mesmas exatas razões ou pretextos.
É difícil prever o desfecho do conflito na Ucrânia. Os pró-russos parecem estar cercados e perdendo terreno em torno de suas capitais, Donetsk e Lugansk. Apesar de a Ucrânia alegar quase diariamente a invasão de seu território e dizer ter destruído uma “coluna de blindados russos” em 15 de agosto (o que a Otan não confirmou), a Rússia não parece disposta a intervir abertamente e é possível que os rebeldes sofram em breve uma derrota militar decisiva. Mas as razões da revolta continuam vivas e agravadas pela destruição da economia do leste e pela situação de milhares de refugiados, o que praticamente garantem uma tensão duradoura dentro do país, entre a Ucrânia e a Rússia e entre o Ocidente e os emergentes, com prováveis efeitos de longo prazo nas configurações das alianças comerciais e tecnológicas mundiais.
por Antonio Luiz M. C. Costa
Reportagem publicada originalmente na edição 814 de CartaCapital, com o título "Efeito borboleta"
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário